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A miragem do parlamentarismo à brasileira – 14/10/2025 – Opinião

Sébastien Lecornu, vestido com terno escuro e gravata, participa de entrevista no estúdio do jornal da France 2 às 20h. Ao fundo, imagem ampliada de seu rosto aparece em tela azul.

VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)

Com a renúncia do primeiro-ministro francês, Sébastien Lecornu, apenas três semanas após a sua nomeação, a França parece se aprofundar na crise política, sem capacidade de perceber uma luz no final do túnel. A recondução surpresa de Lecornu, porém, não parece ter capacidade de reverter esse quadro, tanto que a perspectiva de censura precoce, como busca a oposição, é grande.

A instabilidade governamental é apenas uma ilustração da incapacidade política que atravessa o país, que, há pelo menos três anos, tem governado essencialmente por decretos presidenciais (sem passar pela deliberação na assembleia).

Essa situação se deve à estrutura do regime francês herdada da Constituição de 1958, comumente chamada de semipresidencialismo, com um Executivo bicéfalo. Chefe do Estado, o presidente nomeia um primeiro-ministro, que se torna chefe do governo, e que responde tanto ao presidente como ao Parlamento. O primeiro-ministro pode ser derrubado pelo Parlamento mediante um voto de censura ou, como no caso do antecessor de Lecornu (François Bayrou), caso ele perca um voto de confiança.

Esse sistema tem se mostrado bastante estável quando o presidente possui uma maioria favorável na câmara baixa. No entanto, desde 2022, esse não é o caso. O presidente teve de lidar com uma situação de minoria, inicialmente pequena, entre 2022 e 2024 e, desde a dissolução mal sucedida de 2024, com uma minoria franca. Essa situação fez com que o centro de gravidade do poder na França tenha se deslocado para o Parlamento.

Como vimos, tal situação, em conjunto com a conformação de três blocos de força semelhante (esquerda, centro e extrema direita), porém com objetivos e aspirações irreconciliáveis, transformou a vida política francesa em um “vaudeville” permanente, marcado por uma dupla instabilidade governamental e política, da qual o principal beneficiário parece ser a extrema direita.

No Brasil, essa discussão ressurge em meio à fragmentação partidária e a uma dificuldade de articulação política pelo Executivo. O debate sobre adotar o semipresidencialismo sempre existiu, mesmo após o plebiscito de 1993, mas ganhou força em 2022, quando se criou um grupo de trabalho na Câmara dos Deputados para discutir a possibilidade de testar o modelo a partir de 2030.

Os defensores argumentam que a mudança reduziria os custos de negociação entre Executivo e Legislativo, com a possibilidade de substituição de governos sem o trauma de um impeachment. Mas, à luz do sistema francês, cabe a seguinte reflexão: trocar de sistema não garante mais estabilidade. Em alguns casos, pode aprofundar as crises. Mesmo com um sistema presidencialista e um Congresso multipartidário, o Brasil tem produzido a governabilidade por meio do conhecido presidencialismo de coalizão, que operou com sucesso por mais de 30 anos.

No contexto brasileiro atual observa-se, no entanto, um processo de fortalecimento do Legislativo mediante, entre outras coisas, a liberação automática das emendas parlamentares. Conclui-se, assim, um custo cada vez maior para garantir governabilidade, especialmente com a Câmara dos Deputados, e um incremento da incerteza política. O exemplo da aprovação da PEC da Blindagem pela Câmara, medida que não possui nenhum respaldo político e social significativo, ilustra bem essa situação de engrandecimento do Legislativo.

No entanto, o Executivo ainda pode decidir quando liberar os recursos e dispõe de instrumentos legislativos para pautar o Congresso. Em outras palavras, o mandato presidencial no Brasil tende a ser preservado porque o presidencialismo brasileiro aprendeu a funcionar em meio à diversidade de partidos na arena legislativa. A França, por outro lado, depende de dissoluções de governo e recomposições sucessivas para enfrentar os impasses, com períodos de paralisia decisória.

O verdadeiro desafio brasileiro, portanto, não é substituir o sistema de governo, mas aperfeiçoar o que já existe. As principais pautas passam por reformar e consolidar o sistema partidário, reduzir a fragmentação e retornar o controle da decisão sobre as emendas parlamentares ao Executivo. Esses são passos mais realistas para o nosso contexto e mais efetivos do que importar um modelo instável, como o francês. O semipresidencialismo pode parecer uma solução elegante, mas corre o risco de gerar, aqui, os mesmos impasses que hoje paralisam a França.

Adrián Albala

Evelyn Apolinaria

Ana Beatriz Oliveira

Francisco Nominato


Respectivamente, professor, doutoranda, graduanda e graduando do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília

TENDÊNCIAS / DEBATES

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Fonte ==> Folha SP

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