Pela primeira vez, o Ministério da Saúde publica uma linha de cuidado de saúde para autistas robusta e unificada entre as áreas de reabilitação e saúde mental.
Desde 2014, a pasta lançou três linhas que traziam diretrizes para o cuidado à saúde de autistas: uma com foco na reabilitação e no cuidado da pessoa com deficiência; uma com foco na atenção psicossocial pela saúde mental; e uma bem resumida que, basicamente, apontava para fluxos dentro da rede de saúde. A pasta não tem registro de linhas anteriores a essas.
Essa multiplicidade de diretrizes refletia a falta de consenso na comunidade de especialistas —e, no fim, a falta de um posicionamento único do ministério— sobre como abordar o tratamento de autistas no Sistema Único de Saúde (SUS): se pela perspectiva da saúde mental ou da reabilitação —esta última mais próxima do atendimento buscado pelas famílias na saúde privada, com terapias multidisciplinares e em carga intensiva.
“Nós criamos a Rede de Atenção Psicossocial, em 2011, e depois o Viver Sem Limites, que construiu o CER, o Centro Especializado em Reabilitação. Naquele momento teve um grande debate: qual das redes tem que assumir o Transtorno do Espectro do Autismo?”, disse o ministro Alexandre Padilha (Saúde), no lançamento da nova linha, nesta quinta-feira (18). Para ele, trata-se de um amadurecimento e uma construção coletiva feita desde então.
A “Linha de Cuidado para Pessoas com Transtorno do Espectro Autista – TEA”, que substitui as três anteriores, faz um apanhado de leis e marcos envolvendo pessoas com deficiência e autismo, traz afirmações importantes —como a de que o autismo não tem cura, de que a intervenção deve ser precoce e iniciada antes mesmo de um diagnóstico— e explica termos chave sobre autismo —como “meltdown” e “shutdown”, o uso da CAA (Comunicação Aumentativa e Alternativa), e técnicas de regulação sensorial.
O documento também detalha o passo-a-passo, dentro da rede de saúde, para a identificação dos primeiros sinais do Transtorno do Espectro Autista (TEA), o uso do M-CHAT como instrumento de rastreio, e o emprego da atenção básica de saúde para diagnóstico e acompanhamento de casos leves.
“Para a organização dos fluxos, entende-se que casos de menor gravidade, sem grave comprometimento nas aquisições motoras, de linguagem e que apresentam boa tolerância à socialização devem ser mantidos em acompanhamento na Unidade Básica de Saúde, com apoio matricial da atenção especializada (equipes multiprofissionais, CER e Capsi/Caps). As entidades do terceiro setor (Apae, AMA, Abads, AACD, entre outras), podem contribuir no processo de cuidado conforme os arranjos locais pactuados. Casos de maior gravidade, em que há comprometimento sobre a funcionalidade do sujeito ou riscos psicossociais, devem ser acompanhados pela equipe especializada dos CER, Capsi/Caps e demais componentes especializados”, afirma o documento.
Ao entrar nas especificações dos serviços prestados pelo CER e pelo Caps (Centros de Atenção Psicossocial), a linha afirma que “nas cidades em que coexistem CER e Caps, não se justifica a exclusão de nenhum desses dispositivos do fluxo assistencial destinado às pessoas com TEA. O acesso deve ser orientado conforme as especificidades: no caso do CER, para atender às demandas de reabilitação; e, no Caps, para o acompanhamento de situações em que haja suspeita ou confirmação de sofrimento psíquico. Há uma necessidade imperativa de que ambos os dispositivos aprimorem seus recursos de trabalho compartilhado, de modo a evitar exclusões. Além disso, os Caps I, II, III, IV e AD fazem parte da rede de referência também para o cuidado psicossocial de usuários com TEA adultos e idosos”.
Por mais que a linha mencione a necessidade de se evitar “intervenções excessivas sem evidências científicas” e aponte para terapias multiprofissionais, ela não especifica as possibilidades de tratamento com evidências científicas robustas.
“Insta ressaltar que existem vários tipos de intervenções para o transtorno do espectro autista, cada uma com diferentes enfoques e abordagens. Revisões sistemáticas indicam que todas as intervenções para essas pessoas oferecem benefícios e não há evidências suficientes para afirmar que um modelo seja superior a outro (Maglione et al.,2012; Seida et al.,2009; Weissman; Bridgemohan, 2015). A escolha da abordagem deverá considerar a especificidade e a singularidade de cada pessoa e a formação/qualificação do profissional”, diz o documento.
Segundo Arthur Medeiros, coordenador-geral de Saúde da Pessoa com Deficiência do ministério e coordenador do documento, as possibilidades terapêuticas estarão listadas numa atualização do “Guia de Cuidado Integral às Pessoas com TEA”, que deve ir à consulta pública no próximo mês.
Nesta quinta, o ministro da Saúde destacou a importância do rastreio, da intervenção precoce independente do diagnóstico fechado, da atuação da atenção primária no desenvolvimento infantil, e afirmou que o ministério vai abraçar “as várias metodologias” de terapias.
Cuidado para gestantes autistas e cuidadoras
A linha tem um trecho específico sobre o cuidado com gestantes autistas, destacando a necessidade de uma abordagem integrada na rede de saúde: “É fundamental oferecer suporte especializado que contemple as especificidades do autismo, como as dificuldades de comunicação e a sensibilidade a estímulos, promovendo uma abordagem centrada na pessoa e na redução de riscos obstétricos. A implementação de um pré-natal e assistência ao parto e puerpério adaptado às necessidades de mulheres autistas não apenas promove melhores resultados para a mãe e o bebê, mas também reforça o direito à assistência adequada, humanizada e equitativa, conforme preconizado pelas diretrizes da Rede Alyne”.
Outro destaque do documento é o trecho em que o ministério aborda a necessidade de envolver as famílias no tratamento de pessoas autistas —sem que isso signifique uma simples transferência de responsabilidades.
“Quando uma cuidadora de uma criança com TEA está sozinha, ou os adultos no seu entorno lançam mais demandas do que oferecem apoio, reconhecemos sobrecarga que pode produzir circuitos de retroalimentação de desgastes, sofrimento e piora da vida tanto para as crianças autistas quanto para essas cuidadoras. Nesse caso, coloca-se o grande desafio de articular dois processos de cuidado não mutuamente excludentes: olhar para a criança com TEA em seu processo de desenvolvimento e olhar para a sua cuidadora e disparar processos voltados à ativação e à implicação da sua rede de apoio e cuidar do sofrimento ligado a essa sobrecarga”, diz o documento.
Fila de espera enorme
A linha de cuidado reconhece que “o cenário nacional ainda evidencia desigualdades no acesso a serviços especializados, carência de profissionais qualificados e uma necessidade urgente de articulação entre os diferentes níveis de atenção e setores envolvidos no processo de cuidado”.
O lançamento da linha, nesta quinta, ocorreu em um CER II, no Distrito Federal, uma entidade privada sem fins lucrativos conveniada com a Secretaria de Saúde, que atende a 214 crianças em seu braço de reabilitação intelectual (que inclui autismo). Outras 887 crianças de até 8 anos estão na fila de espera –espera que pode durar de três a quatro anos, segundo Emanuelle Vieira, coordenadora da reabilitação intelectual do local.
A espera joga contra a plasticidade cerebral. “Essas crianças estão ficando mais velhas”, alerta ela.
Fonte ==> Folha SP